4ª Turma: Justiça do Trabalho é competente para controlar políticas de trabalho em Cascavel
A 4ª Turma de desembargadores do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (TRT-PR) declarou a competência da Justiça do Trabalho para o processamento de ações que visem suprir eventual omissão do poder público municipal em casos relacionados às políticas de trabalho. A decisão reformou o entendimento do 1º grau e garantiu a continuidade de uma ação do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR) contra o Município de Cascavel, Oeste do Paraná, cujas medidas para combater o trabalho de crianças e adolescentes não seriam eficazes. Dessa forma, a Administração Municipal deve atender às exigências e apresentar um plano de ação para o tema.
Com a decisão, proferida no dia 16 de outubro, a 4ª Turma determina o retorno do processo para a 2ª Vara do Trabalho de Cascavel, o juízo de origem, para prosseguir o julgamento. A determinação está prevista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no Tema n.º 698 do ementário de Repercussão Geral. O relator do acórdão no TRT-PR, desembargador Ricardo Bruel da Silveira, explicou que a decisão do Supremo teve por objetivo assegurar a observância dos princípios da separação dos poderes e da autocontenção judicial (judicial self-restraint), “sem descurar da missão institucional do Poder Judiciário na realização do controle da execução de políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, com vistas à superação de estado de coisas inconstitucional”.
Porém, a atuação da Justiça do Trabalho nesse caso não é absoluta, ressaltou o relator. A Jurisdição deve, em sede de controle judicial de políticas públicas, “estruturar, em conjunto com os Poderes Executivo e Legislativo, Ministério Público e Sociedade Civil, plano de ação que seja eficaz à proteção e promoção das políticas de combate à erradicação do trabalho infantil”.
O caso
O "Diagnóstico Intersetorial Municipal", elaborado em cooperação técnica pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Ministério do Desenvolvimento Social do Governo Federal, no âmbito do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), constatou que o Município de Cascavel se encontra entre aqueles com elevada incidência de trabalho infantil, inclusive em suas piores formas. A partir dessa constatação, “de potencial estado de desconformidade com o ordenamento jurídico”, o MPT instaurou, em 2021, um Procedimento Promocional. Durante a sua instrução, sustenta o MPT, confirmou-se a insuficiência das políticas públicas de enfrentamento do trabalho infantil realizadas pelo Município de Cascavel.
O MPT propôs assinatura do Termo de Ajuste de Conduta (TAC), sendo rejeitado pelo município, sob o fundamento de que as obrigações propostas pelo Ministério Público do Trabalho já se encontrariam parcialmente atendidas pelas políticas públicas em vigor. Diante da negativa da assinatura, o MPT ajuizou ação coletiva, em setembro de 2022, pedindo que município de Cascavel cumpra 18 procedimentos, entre eles:
- garantir no orçamento municipal de percentual mínimo de 1% (um por cento) para implementação da política e do programa municipal de prevenção e erradicação do trabalho infantil
- promover, de imediato, a intersetorialidade das políticas públicas de promoção, defesa e controle social dos direitos da criança e do adolescente, com foco na prevenção e erradicação do trabalho infantil e proteção do trabalhador adolescente
- realizar, pelo menos uma vez por mês (...) ações de busca ativa voltadas para o resgate de crianças e adolescentes exploradas no trabalho
- providenciar, no prazo de 180 dias, melhorias nas ações socioeducativas e nas oficinas realizadas nos espaços de convivência
- realizar o efetivo resgate de todas as crianças e adolescentes que trabalhem ou exerçam atividades de comércio ambulante na zona urbana, em regime de economia familiar na agricultura e pecuária, exploração sexual e aliciados para o tráfico de substâncias entorpecentes
O processo foi distribuído para a 2ª Vara do Trabalho de Cascavel. Em decisão proferida em junho de 2024, o juiz declarou a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a ação, pois o caso não se enquadra em irregularidades no quadro funcional do município. Trata-se da rediscussão das políticas públicas adotadas no âmbito do ente público voltadas para regular a sociedade cascavelense e não o seu próprio quadro funcional, pois tudo é voltado ao público externo-sociedade e à comunidade e não ao público interno-quadro funcional.
Porém, a 4ª Turma do TRT-PR reformou o entendimento do Juízo de 1º Grau. Diversos fundamentos foram apresentados, como referências a decisões do STF e TST e de interpretações jurisprudenciais.
E foi um trecho da própria Constituição Federal um dos fundamentos da decisão do Colegiado:
De acordo com o art. 114 da CF, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
"I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
(...)
IX - outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei."
Também foi citada a Lei Complementar nº 75/93, que trata das atribuições do Ministério Público. Diz o art. 83: Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho:
(...)
III - promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos
(...)
V - propor as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho".
“Pelo teor dos dispositivos constitucionais e legais, compete à Justiça do Trabalho o processamento de ações coletivas de tutela de interesses coletivos lato sensu, a exemplo dos direitos difusos e fundamentais de crianças e adolescentes em situação de trabalho proibido (CF, arts. 5º, XXXV, 114, I e IX, 129, I, II e III, Lei Complementar nº 75 /1993, art. 83, III). É preciso compreender, portanto, que a competência da Justiça do Trabalho não se limita às causas entre empregadores e empregados, tampouco entre tomadores de serviços e trabalhadores lato sensu, alcançando todas as causas que tenham como origem a relação laboral, inclusive aquelas de índole coletiva que visem a superação de um estado de coisas inconstitucional, como a demanda ora analisada”, afirmou o relator, desembargador Ricardo Bruel da Silveira.
O magistrado pontuou, entre outros, que a Justiça Laboral tem por missão constitucional assegurar, e viabilizar, a tutela dos direitos de crianças e adolescentes que iniciam a vida laboral precocemente, em prejuízo ao seu desenvolvimento físico, intelectual, emocional e moral. “Nessa ordem de ideias, a responsabilidade do ente municipal pela eficácia das políticas públicas de erradicação do trabalho infantil, reforçada por sua adesão às ações estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), é questão que tem como origem relações laborais, difusamente consideradas, restando nítida a competência da Justiça do Trabalho”.
Mas, nesses casos, a competência da Justiça do Trabalho é somente excepcional, conforme estabelece o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n.º 684612, DJe 30/06/2023, leading case do Tema n.º 698 do ementário de Repercussão Geral, e se restringe ao controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário.
“Nesse cenário, inexiste óbice para que, em sede de processo estrutural, o Poder Judiciário estabeleça balizas ao Administrador Público na execução do referido plano de ação, possibilitando, a um só tempo, a superação do estado de desconformidade das políticas públicas voltadas à realização dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes submetidos à trabalho precoce, e a observância do núcleo do mérito administrativo. Admitida a possibilidade de controle das políticas públicas de erradicação do trabalho infantil pelo Poder Judiciário, a Justiça do Trabalho revela-se a mais capacitada e vocacionada, dada a sua especialidade, para induzir à superação do estado de desconformidade das políticas públicas municipais de enfrentamento ao trabalho infantil e exploração irregular do trabalho do adolescente, considerando a sua missão constitucional de assegurar, e viabilizar, a tutela dos direitos de crianças e adolescentes que iniciam a vida laboral precocemente, em prejuízo ao seu desenvolvimento físico, intelectual, emocional e moral”, ressaltou o relator.
Texto: Gilberto Bonk Jr. / Ascom TRT-PR
Foto: Manoel Teixeira / Secom / Prefeitura Municipal de Cascavel