A bússola da Justiça social
Entrevista com o desembargador aposentado (TJ-PR) Paulo Hapner, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e autor dos livros O Paraná no contexto da Justiça do Trabalho e Estruturas pioneiras da Justiça do Trabalho no Paraná.
Quais foram as razões que levaram à criação da CLT?
A criação da CLT evidencia que as normas jurídicas são produto da evolução política e social de uma nação. Desnecessário aprofundar-se no estudo da Filosofia do Direito, no Espírito das Leis de Montesquieu e no Contrato Social de Rousseau para se verificar a predominância da teoria anticontratualista.
Com efeito, a relação capital/trabalho no Brasil, ainda durante o Império, exigia a prestação de serviços sem remuneração, conforme se passava durante a escravidão. Inexistia proteção jurídica ao escravo.
Com a abolição da escravatura, alterou-se um pouco o sistema e, na vida real, embora existisse nessa relação uma fonte de desequilíbrios, pela necessidade de submissão do prestador do serviço, a legislação reinol (Ordenações Filipinas) não oferecia elementos para regulamentação dessa matéria.
Eram poucas as relações desse gênero, salientando-se a criadagem. Nesse caso “o senhor ou amo” era obrigado a pagar ao “criado” o serviço pelo tempo decorrido. Em caso de contrato feito sobre o serviço, cumpria-se o que ficou tratado, como de direito.
No regime imperial nenhuma proteção foi estabelecida aos serviçais e no período republicano, conquanto se votasse a Constituição de 1891, as relações trabalhistas não despertaram a atenção de nossos constituintes.
O Código Civil de 1916 regulamentou a “locação de serviços” no livro do direito das obrigações, regra que era emprestada para harmonizar as relações entre o capital e o trabalho, estabelecendo um preceito para fixação da remuneração a ser feito por arbitramento judicial, conforme o costume do lugar, o tempo de serviço e sua qualidade.
Vitoriosa a Revolução de 1930, iniciou-se uma era de alterações legislativas que, obviamente, levariam em linha de conta a evolução social. O mundo passava pela influência da revolução industrial que se processava no hemisfério norte e chegaria um pouco mais tarde ao Brasil. Era natural essa retardação em virtude da estrutura econômica e social do nosso país naquela ocasião.
Diverso era o processo produtivo num país eminentemente agrícola, tendo por base a produção cafeeira, fator que impunha um estilo de vida adequado à conjuntura. Porém, alguns setores urbanos, como a indústria têxtil, dependente do setor manufatureiro ou artesanal, passaram a sentir os efeitos da mudança com o advento da máquina.
Refletiam no Brasil as mudanças da Europa e dos Estados Unidos, com o desemprego e a diminuição dos salários. Assim, como não há medalha sem reverso, a industrialização trouxe consequências que obrigaram, no primeiro plano, uma natural reação social da classe produtora e, no segundo, decorrente dessa insatisfação, a equiponderância desses prejuízos por necessidade governamental.
A repercussão da luta por direitos trabalhistas nascida na Europa, embora tardiamente, repercutiria no Brasil, tal qual a luta das mulheres pelo voto, igualmente conferido no ano de 1932.
Os protestos e as greves dos trabalhadores na Inglaterra redundaram na redução da jornada de trabalho e na concessão de outros direitos que lhes eram postergados. Diante desse cenário, levando em consideração a necessidade política e social, o governo brasileiro editou o Decreto-lei nº 5.452, a 1º de maio de 1943, visando aperfeiçoar as leis vigentes que regulavam a matéria de forma esparsa, com vigência a partir de 10 de novembro do referido ano.
Num certo sentido, a CLT não passou da fixação de normas emanadas do bom senso e de princípios de solidariedade humana, condizentes com o que preconizava a OIT desde a sua criação. Ou seja, tinha como objetivo primordial, no campo político, amenizar as injustiças sociais e promover maior equidade entre as nações. O Brasil copiava o que se fazia no mundo.
Tratando-se de uma lei social, buscou o interesse da coletividade, sobrepondo-se ao individual ou de classe. Entretanto, a Justiça do Trabalho existente no Brasil, embora ainda não fosse um Poder, através do Ministério do Trabalho, já vinha consagrando, em benefício das classes menos favorecidas, quase todos os dispositivos consolidados, no esmagamento da prepotência patronal e arcaica dos maus empregadores.
As questões do tempo de jornada, previdência social, idade mínima, emprego e renda, saúde e segurança no trabalho, salário mínimo, entre outros, já vinham sendo debatidos no Brasil desde o fim da 1ª Guerra Mundial.
Seguindo essa orientação mundial, coube ao governo de Getúlio Vargas normatizar, num Código único (decreto), condensar os princípios e direitos fundamentais do trabalho, aglomerando também regras processuais especiais para tal finalidade.
Respondendo, com maior simplicidade a pergunta, entendo que a principal razão que levou à criação da CLT foi a necessidade de adaptação do sistema jurídico brasileiro aos princípios vigorantes nas principais nações do mundo.
Qual foi o impacto da CLT na sociedade, em 1943?
Estávamos em plena guerra, com racionamento de energia e uma estrutura econômica embrionária no campo industrial. Faltava matéria-prima e o transporte de mercadorias era deficiente. As viagens marítimas internacionais estavam prejudicadas, com repercussão na produção. Logicamente, as normas sociais não visam somente à proteção dos agentes (empregado e empregador); visam à proteção do emprego e da produção. Essa sempre foi a tônica da engrenagem política.
Induvidosamente, a aplicação rigorosa da nova legislação traria alguns desequilíbrios, mormente, quanto à duração da jornada de trabalho e remuneração.
As indústrias manufatureiras, por força da guerra, se viram na contingência de reduzir os dias de trabalho, porém continuavam responsáveis pelo pagamento integral dos salários contratados com seus empregados. As deduções, anteriormente admitidas, deixaram de ser, criando uma constante fonte de divergência no seio jurídico trabalhista.
Os empregadores desejavam pagar pelo serviço efetivamente realizado, ao passo que os trabalhadores queriam a remuneração contratada: criou-se o salário mínimo, respeitando as características regionais. É que a proteção da massa trabalhadora, conquanto fosse um imperativo social, ao governo cabia também resguardar e até reforçar o capital sem o qual o binômio restaria inócuo.
O que mudou ao longo dos 80 anos? Quais os principais avanços e retrocessos?
O binômio capital/trabalho sofreu grande influência por força da evolução natural de nossa sociedade. Pactos políticos sucessivos, cartas magnas revistas e inovadoras, das quais nasceu uma legislação visando à proteção do trabalhador do campo, com a edição do Estatuto do Trabalhador Rural. Desnecessário falar aqui do êxodo rural provocado por tal iniciativa que, embora se mostrasse obrigatória, por outro lado criou um fator de instabilidade social, com o inchaço das cidades. Parece que, paulatinamente, a sociedade foi absorvendo o choque e as coisas começam a se harmonizar.
A Reforma Trabalhista, efetivamente, prejudicou os trabalhadores?
As reformas ditas trabalhistas são ditadas por diversos fatores que não dizem respeito somente a um dos agentes da produção ou uma classe. A todo direito trabalhista corresponde uma obrigação da produção. Costumo dizer que o binômio capital/trabalho representa uma certa xifopagia. Os irmãos siameses vivem interligados e se alimentam da mesma fonte. O mesmo acontece com o empregado que não vive sem o empregador. O equilíbrio é que deve ser buscado numa reforma social.
Quais são os desafios que o Direito do Trabalho enfrenta diante das novas formas de trabalho que surgiram a partir do desenvolvimento da tecnologia, como a atividade laboral por aplicativos?
Esse aspecto afigura-se um exercício de futurologia. Nossa legislação está sempre presa ao imediatismo e somente se torna realidade diante de alguma crise. A nossa Constituição, cuja perenidade era tão decantada, vem recebendo fendas em sua estrutura com as famigeradas Emendas Constitucionais, no ledo engano de que desse modo se aperfeiçoa o sistema.
Desde a implantação da Justiça do Trabalho em nosso país, a descontinuidade constitucional foi a regra. Além disso, as reformas são intermitentes, de acordo com as reclamações e reivindicações dos agentes políticos.
A par disso, correndo por fora, sem conhecimento desses agentes políticos, surge a avalanche dos efeitos imprevistos, mas, previsíveis, em virtude da ciência tecnológica, das transformações climáticas, das enfermidades pandêmicas, da insuficiência da arrecadação do tesouro para fazer frente às obrigações da Previdência assumida com a Nação.
A questão pode ser respondida com outra pergunta: podemos saber se a população vai aumentar, estabilizar, inverter a curva e encolher?
Cabe ao Direito do Trabalho, ao meu sentir, continuar na busca do equilíbrio do binômio, conforme os desafios que surgem, não só no ambiente laboral. A busca da Justiça social deve ser a bússola dos nossos legisladores que, lamentavelmente, com exceções pontuais, carecem de patriotismo e conhecimento necessário para harmonizar um campo do direito tão relevante.
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