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17 de junho de 2010
Palavras do Presidente do TRT do Paraná,
Desembargador Ney José de Freitas,
a propósito da Inauguração do Centro de Memória da Justiça do Trabalho do Paraná
Fará deste Centro de Memória um Centro de Saber, porque o tempo – emergência da simplicidade – também é conhecimento.
Habituado a julgar questões que surgem das relações de trabalho, fui surpreendido outro dia ao deparar com uma profissão da qual nunca havia ouvido falar. Como sabemos, novas profissões aparecem a todo momento, como resposta às necessidades trazidas pela tecnologia. A profissão específica a que me refiro, porém, surgiu justamente para lidar com as consequências da tecnologia em nossos organismos.
Temos cada vez menos tempo, para produzir cada vez mais, para enfrentar situações constantemente mais difíceis. E quanto maior se torna a complexidade da vida, menor é o tempo de que dispomos para compreendê-la e usufruí-la. Isso tem consequências, estudadas por esse novo tipo de profissional: o cronobiólogo.
Chronos, o tempo, devora seus filhos, limita e define a existência de cada ser. É a unidade de medida da vida.
Zeus e seus cinco irmãos só puderam vencê-lo e estabelecer uma nova ordem quando já haviam sido devorados e foram expelidos pelo monstruoso pai. O tempo é uma luta pela renovação.
A maioria de nós, nesta sala, experimentou os últimos anos do conforto newtoniano – aquela segurança de um mundo mecânico, cuja compreensão exigia pouco mais que alguns anos de estudo da álgebra e das funções matemáticas.
Hoje, porém, estamos vivendo a vertigem do tempo.
Não falo apenas da Era da Informação Instantânea. Não falo apenas da velocidade, que faz com que a inovação tecnológica de janeiro último esteja ultrapassada no mês que vem.
Refiro-me, também, àquela vertigem das horas, que faz do homem uma vítima de seu esfacelamento, no qual os acontecimentos se perdem, as vivências são devoradas instante após instante e tudo se deforma, num contínuo e perpétuo desmoronamento do tempo que fica para trás.
É a razão que faz o homem contemporâneo se perguntar, como o fazia o romeno Eugène Ionesco: "Houve mesmo um tempo? Existiu ontem um ‘presente’?".
A Era da Informação pode nos responder que sim, existiu! Talvez já não mais existam, nem presente, nem tempo, eis que a progressão geométrica dos acontecimentos pode nos lançar no vazio. É o drama das sucessivas e novíssimas contingências repentinas, da interinidade, do lapso temporal que se esvai pelo conceito precário dos minutos, dos meses e das décadas.
O que se verifica hoje é que o mundo se apresenta de modo mais complexo do que aparentava ser em nossa infância, de tal modo que a ciência escapou da esfera da nossa percepção imediata. O mecanicismo cartesiano de Newton já não abarca todas as possibilidades.
As certezas tornaram-se provisórias. A Física, que estuda o tempo, passou a adotar para explicá-lo um vocabulário quase esotérico: singularidades, espaço-tempo, dobra, buracos negros.
Causa a muitos de nós estranheza denominar de "Buraco de Minhoca" aquele hipotético atalho entre dois pontos separados na curva do tempo. Sim! Descobriu-se que nossa velha "flecha" do tempo, em verdade, percorre uma trajetória curva, capaz de dobrar-se sobre si mesma.
Nosso desejo de acompanhar os conhecimentos de ponta transformou em best seller um livro chamado "O Universo Numa Casca de Noz", do matemático e astrofísico britânico Stephen Hawking. Deve ser a obra não compreendida mais lida da história. Foram vendidos mais de vinte e cinco milhões de exemplares desse livro, que tenta explicar, entre outras coisas, a natureza do tempo.
O que é o tempo? - Pergunta Hawking. "Um rio ondulante que carrega todos os nossos sonhos? Ou os trilhos de um trem?".
Essas duas são, certamente, as melhores definições que o autor consegue apresentar, porque, embora seja a mais absoluta experiência que um humano possa experimentar, o tempo é também a mais difícil de compreender.
Em outro livro, menos conhecido, quando procura contar a "Breve História do Tempo", Hawking expõe as muitas abordagens teóricas que tentaram explicar essa grandeza ao mesmo tempo cotidiana e fugidia. Ele conclui, vencido, que o universo é, de fato, desconcertante. O tempo é um permanente desafio.
Um dos autores que melhor refletiu sobre a questão do tempo foi Marcel Proust. No segundo volume da obra "Em busca do tempo perdido", há um trecho extremamente sensível, do qual poucos poderão discordar. Abro aspas: "A melhor parte da nossa memória está fora de nós, numa viração de chuva, num cheiro de quarto fechado ou de uma pequena labareda. Está em toda parte onde encontramos o que a inteligência desdenhara. É a última reserva do passado. A melhor. Aquela que, quando todas as lágrimas pareciam estancadas, ainda sabe fazer-nos chorar. É a memória que está, sim, fora de nós, mas que também nos habita, oculta a nossos olhares, num esquecimento prolongado". Fecho aspas.
Faço essas considerações com um propósito, meus amigos.
Faço-as para dizer que essa parte da memória, desdenhada por vezes pela inteligência, pode ser despertada novamente. E as melhores ferramentas para esse despertar são: o resgate, a preservação, o restauro, a guarda responsável dos momentos que forjaram o nosso presente, ainda que volátil e em diuturna transformação.
Outro gênio, Paulinho da Viola, compositor e marceneiro, desconcerta ouvintes de diferentes gerações ao transitar, com igual respeito e reverência, entre os sábios da velha guarda e os jovens poetas do Brasil.
O respeito à memória, lembra Paulinho, não é "mania de passado". Não é "querer ficar do lado de quem não quer navegar". O passado, para ele, não é a negação do avanço, mas sim aquilo que lhe dá sentido. O tempo é o fenômeno que gera o novo.
Para chegar a Curitiba, no dia de ontem, muitos dos visitantes de outros Regionais utilizaram uma companhia aérea que acaba de lançar seu próprio museu da aviação. Nos vídeos de apresentação do projeto, exibidos nos voos comerciais, talvez tenham ouvido o executivo da empresa revelar que o museu é símbolo de um movimento maior, pelo qual a companhia tenta reconhecer e fixar a própria essência.
Aquela gigantesca corporação está revisitando os valores que seu fundador trouxe à aviação brasileira, nos anos 70, e que se tornaram o diferencial da empresa. A companhia está observando a si própria, na perspectiva do tempo, para compreender o que ela efetivamente é, para revelar sua própria identidade.
"E o que vamos fazer agora?" - perguntaram ao executivo os funcionários da empresa. "Aquilo que sempre fizemos", diz ele, apontando na experiência acumulada o modo de ser que dá consistência aos procedimentos. As coisas testadas, as coisas aprovadas, mas também os seus tropeços - aqueles que hão de ensejar no futuro melhores abordagens.
É nesse espírito que o Tribunal Regional do Trabalho do Paraná criou este espaço.
Não por acaso, o sétimo e último volume da obra de Proust tem um título extraordinariamente revelador. Chama-se "O tempo reencontrado".
Pois "reencontrar o tempo" é o mote, é a indicação de que as épocas podem passar, mas não se esgotam, não se corróem, não se perdem, se as preservarmos como lições.
Neste Tribunal as épocas não hão de se perder. O Centro de Memória, que neste ato é inaugurado, é a instância desse imprescindível resgate.
É o foro da recuperação da nossa história.
É a detentora da competência territorial, na qual se deposita a lembrança daquela viração de chuva, daquele cheiro da pequena labareda – efêmera, sim, mas não evanescente, se a tivermos guardada e ao nosso alcance.
Neste Centro de Memória da Justiça do Trabalho do Paraná, não haverá preclusão.
Não haverá decurso de prazo decadencial.
Neste Centro, não haverá prescrição alguma.
Aqui é o lugar, no âmbito do Judiciário e das relações de trabalho no Paraná, onde estará aquele "tempo reencontrado", a que se referia Proust.
Se a história, como advertia Cervantes, é mais que um êmulo dos tempos; se é mais que um depósito de ações; mais que uma testemunha do passado; se a história é ainda mais do que um mero aviso do presente; por fim, se a história constitui uma advertência do que poderá advir no futuro – é fundamental que olhemos para trás.
Sem conhecê-la, não interpretamos nosso tempo.
Sem estudá-la e compreendê-la, não seremos capazes de planejar e construir um futuro com a segurança e um mínimo de previsibilidade.
Como bem observou Eric Hobsbawn, "a história das classes trabalhadoras engloba sindicalizados e não-sindicalizados; politizados e não-politizados; os que fazem greve e os que furam greve".
A necessidade de historiografrar esta instituição é dever cultural que temos para com as futuras gerações. É imperioso proporcionar, ao pesquisador de amanhã, condições de acesso memorial à documentação de interesse acadêmico, jurídico e social.
O acervo, que queremos permanentemente ampliado, não se limita aos autos findos. Contempla documentos, fotos, livros, pronunciamentos e entrevistas recentemente gravadas em vídeo, com aqueles que fizeram, fazem e farão a história desta Justiça.
Este Centro, contudo, leva em conta que a história não se resume a um mero breviário de vida ou de atuação profissional de uns poucos homens e mulheres que administraram o aparelho judicial. Ela é, abrangentemente, coletiva e comunitária. Bem por isso, não é personalista, embora reconheça a importância de seus personagens.
Ainda assim, impõe-se homenagear, evocando a justa memória daqueles que construíram os fundamentos; daqueles que erigiram, pedra por pedra, o que é o Tribunal Regional do Trabalho do Paraná. Aqueles que proclamaram os princípios que constituem o alicerce desta Corte. Desconhecê-los seria renegar o passado; seria romper com a tradição; seria fragilizar a autoridade moral daqueles a quem chamarei, neste momento, os Pais da Justiça do Trabalho.
Refiro-me àqueles que, independentemente de sua longevidade, nos inspiram a preservar a alma desta Corte, que está muito acima dos desígnios imediatista do ontem ou do hoje.
Refiro-me aos nossos ex-Presidentes: um Alcides Nunes Guimarães, um Luiz José Guimarães Falcão, um Pedro Ribeiro Tavares, uma Carmen Amin Ganem. Refiro-me a Tobias de Macedo Filho, José Montenegro Antero, Leonardo Abagge, ao Ministro Indalécio Gomes Neto, a Euclides Alcides Rocha. A Ricardo Sampaio, a José Fernando Rosas, Pretextato Pennafort Taborda Ribas Neto, Adriana Nucci Paes Cruza, Lauremi Camaroski. Refiro-me ao Ministro Fernando Eizo Ono, a Wanda Santi Cardoso da Silva, a Rosalie Michaele Bacila Batista.
Em última análise, contudo, este Centro é institucional e positivamente funcionalista.
Ao longo dessas décadas, a Justiça do Trabalho foi mais que mediadora: foi o instrumento social de solução – conciliada ou não – dos conflitos resultantes de litígios individuais e coletivos de sua competência.
Foi o respaldo judicial à garantia de direitos. Foi a resposta aos desafios das mudanças sociais e econômicas.
O que todos inauguram conosco, nesta noite, portanto, não é uma cápsula do tempo. Não é um flagrante. Não é o passado congelado em alguma quimera criogênica.
O Centro de Memória é uma ferramenta da renovação, é uma resposta a múltiplos desafios. Por meio dele, nossa geração se apossa da herança intelectual dos que nos precederam na Justiça do Trabalho.
Não foi idealizado para servir de consolo por algum saudosismo, mas para suprir uma necessidade, imprescindível.
Tal como em nossas vidas pessoais, realizamos por vezes a revisão da história que nos constituiu, também as organizações necessitam recapitular e identificar os momentos que lhes deram a constituição que ora exibem.
O Centro de Memória, portanto, é esse arcabouço para o novo. É uma mostra das verdades simples que se fizeram perenes.
O historiador Hendrik Willem Van Loon, que ministrou nas Universidades de Harvard e Munique, afirma que "A história do mundo é o registro do homem em busca do pão de todos os dias".
Conclamo a todos que a continuemos escrevendo.
Aqui ela ficará registrada.